DONA ARCANJA OU ANJO MAIOR - Dedicação aos que vinham e aos que partiam deste mundo.





Enquanto a civilização não chegava até o eixo Tanabí / Porto Taboado, os moradores do largo corredor entre os rios Grande e São José dos Dourados buscavam sua sobrevivência em harmonia com a natureza, valendo se de todos os recursos para a manutenção da própria espécie. Talvez a pior das ameaças fosse a mortalidade infantil responsável por baixas significativas na faixa etária do primeiro lustre de vida.

O sertanejo defendia-se de quase que somente com as benzições e promessas, mesmo sabendo que a possibilidade de sucesso era desanimadora. Sua crença não se abatia com os golpes da fatalidade, e mantinha vivo o seu conformismo dizendo, nas horas mais amargas, que tudo é feito segundo a vontade de Deus.

Como a lei natural do equilíbrio populacional é sabia, e ninguém pensava em planejamento familiar naquele tempo, um elevado número de partos pipocava entre as mais humildes camadas sociais. Daí surgia á importância das parteiras distribuídas entre a escassa população. Suas experiências e habilidades tentavam suprir a falta do avental branco da saúde, até então desconhecido, porque os recursos médicos não chegavam por ali. Em casos extremos, de detecção de leprosos por exemplo, quem aparecia era a polícia para capturar e encaminhar o enfermo condenado a passar o resto da vida nos temíveis leprosários.

As parteiras surgiam como se fossem anjos focados pelo fervor das preces. Uma delas era Dona Arcanja, ou super anjo como diz o próprio nome. È sobre esse nome do passado fujão que vamos comentar.

Dona Arcanja Maria de Jesus viveu entre 1867 e 1969, nas cercanias dos povoados nascentes de Tanabí, Cosmorama e Ecatu, cujo reconhecimento pelas suas habilidades chegava ultrapassar as fronteiras geográficas citadas. Solicitada por todas ass bandas, lá onde o carro de boi cantador ou os cascos dos cavalos pudessem levá-la. E tivessem alguém querendo vir ao mundo, as boas vindas eram com ela mesma. Gerações de idosos, jovens e crianças vieram á luz aparados por suas mãos vigorosas e dispostas.

As jovens mães de primeira viagem nada sabiam de hereditário que lhes instruíssem na fase da adolescência. Não havia diálogo, a filha não recebia qualquer forma de orientação, porque falar das maravilhas da concepção, gravidez e procriação era uma sacrílega tentação. No momento de enfrentar a parteira pela primeira vez parecia o preparo para um salto sobre o abismo, e nessa situação delicada a profissional conquistava a confiança da neófita. Mostrava que sabia de tudo, dos perigos e precauções. Posicionava se entre o Criador e a criatura e se fazia de elo dos recursos da cura caseira com o paciente.

Mas a dedicação de Dona Arcanja não era apenas para com aqueles que vinham ao mundo; para os que se iam também; mandou cercar um cemitério com lascas de aroeira para o sepultamento de anjinhos ( crianças com menos de sete anos ). No centro do pequeno quadrado, assinalando o cristianismo, a cruz, sinal sacrossanto também de aroeira, para que nunca mais acabasse, lá está com mais de 75 anos. Com o zelo que vem sendo recebido dos netos e bisnetos, a relíquia certamente chegará a um século.
Um dos 8 filhos de Dona Arcanja, João Pedro Bessa e as gerações seguintes mantiveram literalmente a chama acesa pela ascendente. No dia 3 de maio (dedicado a Santa Cruz) muitos pavios de algodão eram acesos sobre azeite caseiro depositado na concavidade das cascas de laranja, preparadas uma a uma sem bagaço, e em forma de candeia, alinhadas sobre as lascas do cercado, tal como ainda se repete anualmente. O espetáculo noturno é de um grande rosário cujas contas são os pontos luminosos. Atualmente, os pavios de tecido são substituídos pelas velas de parafina, mas o terço, os cântico a contribuição, o café, o biscoito e os doces permanecem; o anisete servia e serve para alegrar os espíritos

Nossa personagem central prescrevia o resguardo pós natal de 40 dias de reclusão das parturientes, sem tomar vento nem banho, a base de caldo de galinha, costume esse seguido desde que nossa terra passou a se chamar Brasil. Estivemos a um passo atrás de nossos índios em matéria de criação, mas com Dona Arcanja não havia tanta fragilidade, não tinha inveja de índias, nunca soube o que era dieta. Comia de tudo sem saber se estava claro ou escuro, de noite ou de dia, a qualquer hora o tutu de feijão com torresmo era bem aceito. Rapadura, farinha e leite desciam como se fosse um sonífero antes de se deitar. Aos 100 anos costumava sem incomodar os filhos para enfiar a linha que parece mais grossa que o buraco da agulha. Nessas alturas, já não sabemos se os filhos ainda seriam capazes disso; já deviam ter suas dificuldades, ela não, nunca usou óculos. Morreu com 103 anos!

Fonte: Evandro Junior Ferreira
Pesquisador de cultura popular
Contato: estradeirovotu@hotmail.com

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